Poetas Vivos no Exterior

Poetas Vivos no Exterior

A categoria Poetas Vivos no Exterior reúne escritores e escritoras que imigraram para o exterior, e representam a poesia e a cultura das suas localidades passadas, presentes e futuras. Aqui, destacamos poetas migrantes, com suas nuances e vivências.

Andréa Zemp Nascimento é mãe, poeta, artista-educadora e arquiteta. É autora de “A criança e o arquiteto: quem aprende com quem?” (Annablume; FAPESP, 2015), de “tecedeira, com verso…” (Helvetia Éditions, 2024) e de “nascimento constante”, em co-autoria com Paula Constante (TAUP, 2025). Um de seus poemas é destaque do Prêmio Off Flip 2025.

Poesia

pélago

ilhada em ferida
não mais em carne viva

deito os cílios
às margens da casca

e vejo:
a pele é vasta

eras eros

verso é fio
fruto que flui
escuto o que fui
imito outras eras

aproprio-me do fio
não pra compor uma reta
espiral é o que me interessa
espiral da espera à vera

ou então torno-me hera
espraio-me desenfreada
ousada em camadas
agarro-me a peles diversas

quimeras

lisas ásperas
efêmeras vésperas
que reverbero
eco pleno e sincero

é no espontâneo que opero
energia incontida de eros

Cecília Zugaib participou de diversas antologias no Brasil e na Suíça. Foi finalista no Festival de Poesia de Lisboa 2024 e fez parte do Festival Zürich liesst com a instalação da Zwischentext. Lançou os livros de poesia Fina Linha e Khalas em 2024. Atualmente, trabalha em dois livros de haiku e um de contos.

Poesia

Processo

Dizem que, para curar,
há de se chorar,
ir até o fundo, tomar impulso,
se reinventar,
voltar à tona,
receber o tempo como um abraço,
aceitar o passado,
traçar planos,
não pensar,
cultivar hábitos saudáveis,
exercitar-se, dormir muito,
estar com amigos,
meditar.

Curar é processo.
A dor pulsante
corta a alma,
marea os olhos,
seca a boca.

Curar é tempo em câmara lenta,
é silêncio incômodo
que não acha posição confortável,
é exaustão que te adormece,
o caminho necessário.

Vermelho no branco

Desolação,
se saísse,
seria um urro do abdômen
um soco na parede
o vermelho no branco
uma mordida na carne
o branco no vermelho
as lágrimas escorrendo
o vermelho invadindo o branco
o poema no papel
o vermelho – todo o vermelho –
no branco.

Isabela Montello

Isabela Montello nasceu no Rio. Poeta experimental, ela mora e trabalha na França. Seus poemas foram publicados no zine zarf, nas antologias Só a poesia salva, Instagramável e Publicar é um direito, no catálogo da I Jornada Internacional de Poesia Visual, na plaquete A Kaleidoscope of Forms, na Revista TAUP. Seu primeiro livro, ar livre, foi publicado pela TAUP.

Poesia

abraço borboleta

cruzarbraço                    cruzarbraço
sobre peito                        sobre peito
bater                                             bater

de leve
a mão                                            a mão

 

a dor
do pé
no chão

Malu Baumgarten é jornalista, fotógrafa, autora do livro bilingue A poesia da hora braba (2023, ed. Bestiário). Participa de antologias de poesia e prosa pelo Brasil. É uma das criadoras do site Nós e Outras (noseoutras.com), que divulga a arte da mulher desde 2020. Faz parte do coletivo Enluaradas e do Mulherio das Letras. Vive em Toronto, no Canadá e não come animais.

Poesia

Arbustos de pernas grossas

Procurei por ele na estrada escura. Tinha de tudo que o afeto pode oferecer. Laranjas e pêssegos, mirtilos separados para não amassar, um desejo enviesado no peito. Ao longe, no fim do caminho, a casa. Muito a caminhar no dia nublado, um dia, quantos, uma vida? Vesti-me de vermelho para que me visse ele, e sua sombra ofuscava o sol, as orelhas pontiagudas mescladas nas árvores, a fumaça da casinha lá distante, um nunca chegar. Pensava nele e arrepios percorriam-me o corpo, a boca grande, os dentes pontudos, as costas largas do tamanho do mundo onde queria deitar-me e esfregar a pelugem eriçada, alimentar sua fome uma fruta de cada vez, sentir sua língua áspera nas pontas finas de meus dedos. À casa, com seus olhinhos inocentes, não queria chegar. Melhor o medo, o escuro da trilha, a vegetação retorcida, arbustos de pernas grossas. O cheiro dele enchia o ar, eu o respirava e queria, e o que queria não sei.

Joguei ao chão minha capa vermelha, tirei as botinhas de cano, libertei meus pés inchados. Deitada na capa levantei o vestido branco até a barriga, a cesta de frutas descansada ao meu lado, lambuzei-me do azul de mirtilo, adormeci no calor da tarde. Ele chegou-se com cautela, a cheirar-me o rosto com sua fuça molhada. Fartou-se de pêssegos carnudos, lambeu-me ternamente a entreperna, a língua tosca e tão longa procurando vãos e saliências na medida exata do desejo oferecido. Manso, deitou-se ao meu lado quando caía a noite, aqueceu meu corpo com o seu. Aconcheguei-me e sonhei que chegava finalmente à casa, a sombra dele obliterada pelo sol, a estrada negra agora ladeada de verdes, colorida de flores. Dentro da casa uma velha morta me encarou de olhos arregalados, e os olhos gritavam, vai filha, atrás da vida, antes que ela te devore.

Os pés de meu pai

Nunca toquei os pés de meu pai. Morenos
de sol, plantados no chão do barco,
longos e magros, seguros no viver,
eram bonitos os pés de meu pai.

As mãos de meu pai, nunca peguei
só por afeto, nem ele as minhas.
Mas não falsearam a ofertar-me o prumo
no balanço traiçoeiro do Huracán,

prontas a parar-me a queda, os pés firmes
na popa do veleiro, olhos negros que viam
longe e não me viam, os olhos dele

mais além. Sua voz dizia o mundo, do Rio Grande
à Rússia vermelha, do jazz à milonga triste, meu pai,
um homem qualquer.

Marta Cortezão

Marta Cortezão natural de Tefé/AM. Reside em Segóvia/ES desde 2012. Poeta, feminista, antirracista, antifascista. Livros de poesia publicados: Banzeiro Manso (Porto de Lenha Editora, 2017), Meu silêncio lambe tua orelha, Aljavas para Cupido (e-book) ambos pela TAUP, 2023, Amazonidades: gesta das águas (TAUP, 2ª ed. 2024). Organizadora das coletâneas Enluaradas.
Instagram @martacortezaopoeta

Poesia

as hortênsias

o que sabem de mim estas hortênsias?
o que guardam elas de meus segredos
em seus pés robustos e lenhosos?
espreitam-me com seu centenar de olhos neon-violáceos
invadem-me as memórias com garras de harpias
aprisionam-me em sua forma ovoide e periférica
piso a terra úmida e meus dedos largos
se espalham como raízes no seio de Gaia e energizam meu útero lunático
sinto-me diminuta e transparente como um micróbio
vejo uma envelhecida e venosa mão
a profanar o sagrado templo das hortênsias
meu corpo rememora a dor da defloração sofrida…
uma ventania sopra ferozmente movimentando a vegetação ao redor
e uma chuva pedregosa cai em nosso socorro!
bebo também da sabedoria pluviosa das nuvens
abro os olhos refrescada pelo alívio de estar viva
as hortênsias ainda estão aqui e sabem de tudo
: não sou nada, absolutamente nada
sequer o pó que o vento sopra sem destino
mas quando unidas invocamos tempestades

Terezinha Malaquias

Terezinha Malaquias, poeta, escritora e multiartista. Trabalha com diversas linguagens artísticas além do texto. Principalmente com fotografia, vídeo, performance. Pesquisa os temas ancestralidade, mulher, violência, racismo. Escreveu e publicou nove livros. Poemas, crônicas, contos e infantojuvenil. Mora na Alemanha desde 2008. @terezinhamalaquias

Poesia

MODELO VIVO

Sou eu parte integrante da sua arte.
O desenho, a pintura e a escultura se fundem
e se confundem com o meu corpo,
respiração, estado d´alma,
transformando-se assim numa coisa única:
que se toca, pega, vê, sente e gosta.

É um prazer e uma felicidade intensa
fazer parte do seu processo de criação.
O momento é único.
Por mais que se repita essa cena,
ela nunca será igual as anteriores.

No exato momento em que
eu me coloco a sua frente,
o humano deixa de existir
para dar vida ao sagrado.
Sinto uma comunhão entre nós,
quando estamos um diante do outro,
numa grande contemplação.
Suas mãos conduzidas
e guiadas por seu olho,
criatidade, talento e intuição,
fizeram nascer a arte inspirada na
cor da minha pele,
no cheiro, no silêncio,
no olhar e na quietude