Poetas Vivos no Exterior

Poetas Vivos no Exterior

A categoria Poetas Vivos no Exterior reúne escritores e escritoras que imigraram para o exterior, e representam a poesia e a cultura das suas localidades passadas, presentes e futuras. Aqui, destacamos poetas migrantes, com suas nuances e vivências.

Andréa Zemp Nascimento é mãe dois filhos. Graduada e Mestre em Arquitetura e Urbanismo pela USP e Mestre em Mediação Cultural e Artística pela Universidade de Artes de Zurique (ZHdK), é autora de “A criança e o arquiteto: quem aprende com quem?” (Annablume; FAPESP, 2015) e do livro de poemas “tecedeira, com verso…” (Helvetia Éditions – Selo do Festival de Poesia de Lisboa, 2024). Tem poemas em diferentes antologias, entre elas “O amor é um grito” (TAUP, 2024).

Poesia

pélago

ilhada em ferida
não mais em carne viva

deito os cílios
às margens da casca

e vejo:
a pele é vasta

Cecília Zugaib, nascida na Bahia e residente em Zurique, compartilha suas obras desde 2021, explorando gêneros literários variados. Coautora de várias antologias, foi finalista no 9º Festival de Poesia de Lisboa (2024) com o poema “Matizes do Extermínio”. Participou do Festival “Zurich Liest” com suas contribuições para a artzine Zwischentext. Atualmente lança dois livros solos de poesia.

Poesia

Processo

Dizem que, para curar,
há de se chorar,
ir até o fundo, tomar impulso,
se reinventar,
voltar à tona,
receber o tempo como um abraço,
aceitar o passado,
traçar planos,
não pensar,
cultivar hábitos saudáveis,
exercitar-se, dormir muito,
estar com amigos,
meditar.

Curar é processo.
A dor pulsante
corta a alma,
marea os olhos,
seca a boca.

Curar é tempo em câmara lenta,
é silêncio incômodo
que não acha posição confortável,
é exaustão que te adormece,
o caminho necessário.

Isabela Montello nasceu no Rio. Poeta experimental, ela mora e trabalha na França. Seus poemas foram publicados no zine zarf, nas antologias Só a poesia salva, Instagramável e Publicar é um direito, no catálogo da I Jornada Internacional de Poesia Visual, na plaquete A Kaleidoscope of Forms, na Revista TAUP. Seu primeiro livro, ar livre, foi publicado pela TAUP.

Poesia

abraço borboleta

cruzarbraço                    cruzarbraço
sobre peito                        sobre peito
bater                                             bater

de leve
a mão                                            a mão

 

a dor
do pé
no chão

Malu Baumgarten é escritora, fotógrafa, autora de A poesia da hora braba/Poetry of the Wild Hour (2023, Bestiário), uma das criadoras do site Nós e Outras (noseoutras.com) que promove a escrita e arte da mulher. Participa de coletâneas pelo Brasil a partir de 2021. É parte dos coletivos Enluaradas e Mulherio das Letras. Vive entre Toronto, no Canadá e Porto Alegre, RS.

Poesia

Arbustos de pernas grossas

Procurei por ele na estrada escura. Tinha de tudo que o afeto pode oferecer. Laranjas e pêssegos, mirtilos separados para não amassar, um desejo enviesado no peito. Ao longe, no fim do caminho, a casa. Muito a caminhar no dia nublado, um dia, quantos, uma vida? Vesti-me de vermelho para que me visse ele, e sua sombra ofuscava o sol, as orelhas pontiagudas mescladas nas árvores, a fumaça da casinha lá distante, um nunca chegar. Pensava nele e arrepios percorriam-me o corpo, a boca grande, os dentes pontudos, as costas largas do tamanho do mundo onde queria deitar-me e esfregar a pelugem eriçada, alimentar sua fome uma fruta de cada vez, sentir sua língua áspera nas pontas finas de meus dedos. À casa, com seus olhinhos inocentes, não queria chegar. Melhor o medo, o escuro da trilha, a vegetação retorcida, arbustos de pernas grossas. O cheiro dele enchia o ar, eu o respirava e queria, e o que queria não sei.

Joguei ao chão minha capa vermelha, tirei as botinhas de cano, libertei meus pés inchados. Deitada na capa levantei o vestido branco até a barriga, a cesta de frutas descansada ao meu lado, lambuzei-me do azul de mirtilo, adormeci no calor da tarde. Ele chegou-se com cautela, a cheirar-me o rosto com sua fuça molhada. Fartou-se de pêssegos carnudos, lambeu-me ternamente a entreperna, a língua tosca e tão longa procurando vãos e saliências na medida exata do desejo oferecido. Manso, deitou-se ao meu lado quando caía a noite, aqueceu meu corpo com o seu. Aconcheguei-me e sonhei que chegava finalmente à casa, a sombra dele obliterada pelo sol, a estrada negra agora ladeada de verdes, colorida de flores. Dentro da casa uma velha morta me encarou de olhos arregalados, e os olhos gritavam, vai filha, atrás da vida, antes que ela te devore.

Marta Cortezão natural de Tefé/AM. Reside em Segóvia/ES desde 2012. Poeta, feminista, antirracista, antifascista. Livros de poesia publicados: Banzeiro Manso (Porto de Lenha Editora, 2017), Meu silêncio lambe tua orelha, Aljavas para Cupido (e-book) ambos pela TAUP, 2023, Amazonidades: gesta das águas (TAUP, 2ª ed. 2024). Organizadora das coletâneas Enluaradas.
Instagram @martacortezaopoeta

Poesia

as hortênsias

o que sabem de mim estas hortênsias?
o que guardam elas de meus segredos
em seus pés robustos e lenhosos?
espreitam-me com seu centenar de olhos neon-violáceos
invadem-me as memórias com garras de harpias
aprisionam-me em sua forma ovoide e periférica
piso a terra úmida e meus dedos largos
se espalham como raízes no seio de Gaia e energizam meu útero lunático
sinto-me diminuta e transparente como um micróbio
vejo uma envelhecida e venosa mão
a profanar o sagrado templo das hortênsias
meu corpo rememora a dor da defloração sofrida…
uma ventania sopra ferozmente movimentando a vegetação ao redor
e uma chuva pedregosa cai em nosso socorro!
bebo também da sabedoria pluviosa das nuvens
abro os olhos refrescada pelo alívio de estar viva
as hortênsias ainda estão aqui e sabem de tudo
: não sou nada, absolutamente nada
sequer o pó que o vento sopra sem destino
mas quando unidas invocamos tempestades

Terezinha Malaquias, poeta, escritora e multiartista. Trabalha com diversas linguagens artísticas além do texto. Principalmente com fotografia, vídeo, performance. Pesquisa os temas ancestralidade, mulher, violência, racismo. Escreveu e publicou nove livros. Poemas, crônicas, contos e infantojuvenil. Mora na Alemanha desde 2008. @terezinhamalaquias

Poesia

MODELO VIVO

Sou eu parte integrante da sua arte.
O desenho, a pintura e a escultura se fundem
e se confundem com o meu corpo,
respiração, estado d´alma,
transformando-se assim numa coisa única:
que se toca, pega, vê, sente e gosta.

É um prazer e uma felicidade intensa
fazer parte do seu processo de criação.
O momento é único.
Por mais que se repita essa cena,
ela nunca será igual as anteriores.

No exato momento em que
eu me coloco a sua frente,
o humano deixa de existir
para dar vida ao sagrado.
Sinto uma comunhão entre nós,
quando estamos um diante do outro,
numa grande contemplação.
Suas mãos conduzidas
e guiadas por seu olho,
criatidade, talento e intuição,
fizeram nascer a arte inspirada na
cor da minha pele,
no cheiro, no silêncio,
no olhar e na quietude