Gisela Maria Bester é escritora gaúcha radicada no Paraná e no Tocantins, mestra e doutora com estágio pós-doutoral em Direito. Vencedora do 38.º Prêmio Yoshio Takemoto de Literatura 2024 (Haicai). Autora dos livros Pinte-me de Azul (Mondru, 2023 –Troféu Capivara Reconhecimento Literário, no Prêmio Literário da Cidade de Curitiba 2024) e Sorrir, esse sacrifício (TAUP, 2024).
ANTRÓPICO
aterrisse seu avião em uma pista cheia de mar
sufoque-se com as fumaças das queimadas
– sobrepostas sonoridades já não mais possíveis –
cegue-se com as tempestades de fuligens
tome veneno no copo d´água, outrora de vida cristalina
coma hormônios no frango de padaria
ingira antibióticos e líquidos vacinais
nas maminhas da macia carne bovina
celebre o fim das outras espécies, asas não
ria do veado dependurado, sangrando no seu gozo estéril, azar
faça pouco da onça, na beira da civilização
não se esqueça da transgenia, comendo a sua fome feia, recrute sempre sua imensa ganância
sinta calor extremo, águas espessas
compre mais aparelhos de ar-condicionado
e espere os apagões, na sua plúmbea visão
coce seu cancro de pele de ozônio de sol aberto
desafie a rotação e a bondade do planeta
extraia mais riquezas daquilo que não é seu
mate indígenas por amianto, lítio, cassiterita, ouro,
madeira e terra, espalhando ácido pranto
conte mais dinheiros e vantagens,
derrube mais árvores, mate mais e mais, nascentes, sementes,
bichos, sonhos, afetos, e não se esqueça, imutável ser,
de fazer de conta que o inferno não parte de si
Um corpo que cai
Mulher, te dei morada, mas…
essa boca humilhada
esses olhos gencianos
onde estão teus dentes?
Mulher, te dei caminho
de veias, para resvalar o sangue quente
de pernas, para levar teus sonhos ao cio
de línguas, para friccionar tuas traduções
e há glossários, para necessárias desobediências
Mulher, te dei desejos
Cordas e sons de cantar a vida úmida
Mas essa dobradiça repetindo
rangendo mecânica dor
esgotada
e seca
qual trapo perdido, escorregando no vazio
movimenta insana inanição
Mulher oceânica
investiga teus rastros
e tenha em ti um poema
porque um corpo que cai
é o mesmo que se levanta